Escrever para salvar o tempo
A relação escrita versus tempo, Patti Smith e livros bons.
Escrevo para não esquecer. Não as datas, mas o que escapa entre elas. O que foi vivido sem importância aparente, mas que deixou marcas. A forma como alguém me olhou. O silêncio de uma manhã. A dor de uma ausência que parecia pequena. Escrevo para fixar o que o tempo tenta apagar.
Sábado terminei de ler Patti Smith, em Devoção, desde então só penso sobre a relação escrita versus tempo. Não é um romance, nem um diário, nem tampouco um manifesto. É tudo isso ao mesmo tempo. Uma deriva. Uma vigília. Um documento íntimo do instante em que a realidade se transforma em necessidade de escrever. Quando leio que ela vê uma jovem patinadora através da vitrine de uma livraria e, a partir dessa imagem, começa a compor uma ficção, reconheço esse movimento: o ínfimo que se torna absoluto. Há imagens que nos perseguem, não porque são importantes, mas porque tocam uma parte secreta que não sabemos nomear. Escrever é tentar alcançar essa parte, ou pelo menos cercá-la.
Quando escrevo, é como se eu tentasse recuperar pedaços meus que o tempo levou — nunca de forma suave. Porque o tempo não leva apenas o que aconteceu. Ele distorce. Ele transforma. E às vezes o que escrevo é só uma tentativa de corrigir uma lembrança, de devolvê-la à forma em que me feriu, ou em que me deu prazer. De reencontrar a verdade que ficou escondida sob camadas de medo, conveniência ou silêncio.
Patti escreve que a escrita é “um ato de salvação”. Não me parece exagero. Salvar o que se viu. Salvar quem se foi. Salvar a si mesma. E talvez seja isso que a literatura, quando é honesta, consegue fazer: transformar o que é pessoal em partilha. Não de forma grandiosa, mas comum. Ordinária. Como quase tudo na vida. Mas é nesse comum que a verdade se esconde. Escrevendo, dou forma a essa verdade. E, assim, eu mesma me torno parte dela.
A escrita é o lugar onde o tempo continua.
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livros
Devoção, Patti Smith
Ler Devoção de Patti Smith é reencontrar, em outra mulher, em outra língua, um gesto que me levou a escrever: a tentativa de salvar algo do tempo. Não é um romance, nem um diário, nem tampouco um manifesto. É tudo isso ao mesmo tempo. Eu estou obcecada!
A vergonha, Annie Ernaux
“Meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde.”
Ao se debruçar sobre um episódio de violência doméstica do pai contra a mãe quando tinha doze anos, Annie Ernaux põe em curso o doloroso processo de rememoração de uma experiência traumática, ao mesmo tempo que identifica nesse incidente a raiz de um sentimento que passaria a acompanhá-la para o resto da vida.
estou lendo
Eu só existo no olhar do outro?, Ana Suy e Christian Dunker
Freud (1893-1895) - Obras completas volume 2: Estudos sobre a histeria
Susan Sontang: A entrevista completa para a revista Rolling Stone, Jonathan Cott
Falando em bons livros, criei um clube do livro grátis, com reuniões mensais online e que a ideia é ler livros de até 100 páginas. O primeiro foi Annie Ernaux e agora leremos Ana Martins Marques. Vem para o Chics & Leitores!
Compre meu livro Domingo, publicado pela Editora Patuá!
O escritor é alguém que presta atenção ao mundo, disse Susan Sontag. Pois Domingo enxerga o mundo a todo instante. São poemas em prosa, conversas por telefone, bilhetes nunca entregues, explosões de ternura; histórias inventadas e histórias vividas pela própria autora. O resultado é moderno, humano e original. É daqueles livros que, ao ser terminado, dá vontade de começar de novo.
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Bjbj,
I.
você descreveu Devoção da Patti tão lindamente que senti vontade de reler. que linda escrita